Paraíba

Venezuelanos que moravam na comunidade Dubai buscavam vida melhor no Brasil: 'sinto que perdi o pouco que tinha'

Por PCV Comunicação e Marketing Digital

02/12/2021 às 08:39:10 - Atualizado há
Comunidade atingida por ação de desocupação no último dia 23 de novembro era abrigo de mais de 40 famílias venezuelanas. Comunidade Dubai, em João Pessoa, abrigava mais de 40 famílias venezuelanas antes da desocupação.

Ana Beatriz Rocha/g1

A Dubai de João Pessoa não falava só português. A comunidade atingida por uma ação de desocupação no último dia 23 de novembro era abrigo de mais de 40 famílias venezuelanas. Mulheres, homens e crianças vindas de um país vizinho em busca de uma vida melhor. Procuravam casa, comida, emprego e estudo. Mas capital paraibana não tem sido capaz de garantir isso.

A comunidade Dubai ficava na zona sul de João Pessoa, em uma área com mais de 14 hectares, considerada de preservação ambiental permanente. Os moradores começaram a ocupar a região em 2019, chegaram aos poucos em busca de um espaço que não fosse a rua para montar seus barracos de lona. Dois anos depois, eram cerca de 800 pessoas vivendo na Dubai, em espaços de 10x20m² dividido para cada um que chegava e recebia a autorização dos outros moradores para serem assentados.

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Segundo os relatos, as famílias venezuelanas viviam bem integradas e numa dinâmica de coletividade na comunidade. Os desafios eram semelhantes aos dos que vivem fora da Dubai. A forte imigração de venezuelanos para o Brasil se deu por causa da instabilidade política que o país enfrenta desde 2013.

Conforme os dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), entre 2015 e maio de 2019, o Brasil registrou mais de 178 mil solicitações de refúgio e residência temporária. Atualmente, as informações do Ministério da Cidadania atestam um quantitativo superior a 260 mil. A maioria dos imigrantes entra no país pela fronteira norte do Brasil, no estado de Roraima, e se concentra nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, capital do estado. Mas houve, com o tempo, distribuição dessas famílias e muitas delas foram trazidas à Paraíba.

Segundo informações de pesquisas do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), mais de mil venezuelanos vivem, atualmente, no estado. Apesar das assistências oferecidas por entidades e iniciativas independentes, a maioria ainda enfrenta dificuldades de subsistência.

'O único barraco que eu tinha era com muito esforço. Sinto que perdi o pouco que tinha', diz venezuelana em ginásio

Umas dessas histórias é a de Viviana, uma venezuelana de 25 anos encontrada pela reportagem do g1 abrigada num ginásio de João Pessoa. Viviana faz parte de uma das 40 famílias que viviam na comunidade Dubai até semana passada, quando houve a desocupação. As quase 800 pessoas foram retiradas da área onde viviam por causa de uma ação judicial que atendeu a um pedido da prefeitura.

Viviana é venezuelana e morava na comunidade Dubai em João Pessoa

Ana Beatriz Rocha/g1

Com suas casas e barracos demolidos, foram levados a ginásios e escolas da capital paraibana. Do dia para noite seus pertences estavam espalhados num espaço sem divisões, sem saber quando teriam, novamente, a oportunidade de construir uma vida. Viviana está abrigada no ginásio do Centro Profissionalizante Deputado Antônio Cabral, no bairro de Valentina, zona sul da cidade. Lá estão mais de 300 moradores.

Ela é mãe de duas crianças, eram delas as roupas que lavava numa máquina quebrada do lado de fora do ginásio. Viviana se viu, junto com o marido, desempregada durante a pandemia. Foi nesse cenário que precisou pedir assentamento na Dubai, há cerca de 1 ano. A conversa com a reportagem é travada num "portunhol" de quem mistura os dois idiomas que conhece, com muita dificuldade. A educação que teve acesso no Brasil foi limitada, se deu pelas trocas com quem ia encontrando pelo caminho.

Sobre o dia da desocupação, na ação que a levou até o ginásio onde se via sem esperança, afirma que era difícil entender o que estava acontecendo por não ser local:

“Eu não entendi o que os policiais diziam, era ruim de entender. Depois percebi que eles tavam me mandando sair, mas eu não sabia para onde. Só tinha uma TV e uma geladeira, as duas quebraram na confusão”, desabafou.

Viviana levou a televisão, mesmo quebrada, ao ginásio onde está abrigada

Ana Beatriz Rocha/g1

Mas a maioria das histórias dos venezuelanos estão abrigadas no segundo ginásio visitado pelo g1, o Hermes Taurino, no bairro de Mangabeira. Eles não sabem quantificar quantas pessoas estrangeiras estão lá, ao todo são 215 moradores da comunidade Dubai.

A porta de entrada já denunciava que o espanhol tem sido muito falado por lá. Quatro mulheres pararam o diálogo para contar como tem sido desde que vieram para o Brasil.

A primeira a falar foi Virjeris Fernandez, uma jovem de 20 anos que vivia na Dubai há 5 meses. De Brasil ela tem quase 1 ano e meio, mas antes de chegar em João Pessoa, passou um ano em Roraima, na divisa da vida que deixou para trás. Sem filhos, solteira, contou que tudo que tinha na vida era o barraco na Dubai, o único lugar que apareceu para ela, que não tinha condições de pagar um aluguel:

“Eu não tenho dinheiro não, nós viemos da Venezuela numa situação forte. Eu quero um trabalho digno, o único barraco que eu tinha lá era com muito esforço. Sinto que perdi o pouco que tinha”, desabafa Virjeris.

Um dos principais desafios listados por ela é que, para os venezuelanos, é muito difícil conseguir documentações básicas e muitos estão, há anos, sem conseguir tirar uma carteira de trabalho. Cartão de crédito é algo que nunca teve, acredita que ele seria um passaporte para um mundo que pouco conhece, o do consumo dos itens que necessita. Virjeris fala que queria uma vida diferente, que via no Brasil uma lugar de oportunidades de estudo.

À esquerda, Virjeris: venezuelana tem 20 anos e veio ao Brasil com sonho de estudar

Luana Almeida/g1

“Nós não temos dinheiro, saímos de uma situação bem difícil na Venezuela, não consigo me manter. Tudo para gente é muito esforço, para comida ou para o barraco que tínhamos”, comenta aos tropeços de quem mistura espanhol com português.

Para se identificar só tem um número, um CPF que não tem sido suficiente para garantir que ela alcance o sonho de estudar. Pelo caminho, durante a desocupação, Virjeris lembra dos tijolos que ficaram no terreno da antiga Dubai. Era com eles que ela e as amigas e familiares pretendiam sair dos barracos de lona para algum cômodo de alvenaria: “por isso foi muito difícil sair de lá, era tudo que a gente tinha”.

Foi a jovem que mostrou o espaço onde vivia com sua família no ginásio. Um colchão rodeado por móveis tinha se tornado o único espaço capaz de abrigar oito pessoas, que dormiam mais empilhadas que apertadas nos poucos metros quadrados disponíveis.

Colchão onde oito pessoas da mesma família têm dormido durante a estadia no Hermes Taurino

Ana Beatriz Rpcha/g1

Enquanto contava o que tinham perdido, Virjeris foi interrompida por uma companheira que insiste em falar sobre fome.

“Saímos da Venezuela porque não podíamos aguentar a fome. Não saímos de lá de graça, e agora estamos aqui, mais uma vez sem nada”, conta Rosa. Com um dos filhos no colo, a mulher que fala com ares de desespero tem 39 anos e é uma das sete pessoas da família que está abrigada no ginásio, entre marido, filhos e netos.

Rosa tem dois filhos e pede que situação seja resolvida o mais rápido possível

Ana Beatriz Rocha/g1

“Não conversaram conosco, acordamos cortando nossa luz, a gente não entendia o que se passava. Mas eu só fui para lá por achar que minha vida seria diferente”, relata Rosa.

'O barraco de lona era nosso canto, era limpo, aqui não', diz venezuelana

A desigualdade social presente no Brasil é complexa, mas a realidade dos imigrantes leva ao limite o que se sabe sobre sonhos. Quem deixa isso muito nítido é a venezuelana Ana Cecília Bogaví, que afirmou saber que, embora pareça pouco para muitos, o que ela perdeu na comunidade Dubai eram as chances que nutria, dia e noite, de reconstruir a vida.

Chegou à comunidade através de amizades brasileiras. Construiu o barraco junto com outras mãos venezuelanas. Lá ela não tinha contas fixas a pagar, isso permitia que vivesse, ainda que na irregularidade.

Aos 50 anos, era uma das poucas estrangeiras do ginásio Hermes Taurino que tinha tido acesso a documentação. Com isso, já tinha tido acesso a pagar aluguel em João Pessoa, mas conheceu de perto o que significava ser desempregada no Brasil. Significou perder quase tudo. Nos últimos meses ela estava fazendo um curso de capacitação para costureira, oportunidade que acredita não ter mais depois da desocupação.

“Lá também era longe do curso, mas eu confiava em deixar meu filho pequeno com as vizinhas. Aqui tá tudo incerto, como eu vou confiar em sair para estudar e deixar meu filho aqui? Só vai quem tem casa”, explica.

Ana Cecília teme ter perdido a única coisa que tinha, um curso de capacitação para ser costureira

Ana Beatriz Rocha/g1

“Eu sou mãe solteira com dois filhos”, foi assim que Ana Cecília escolheu se apresentar. Nisso muita coisas ficava exposta, foi possível entender sua agonia, andando de um lugar ao outro do ginásio mostrando como tem vivido com os colegas.

“Eu briguei com meus colegas, dizendo que a gente tem que se revoltar com isso. Precisamos de uma casa, eu estava estudando para conseguir um emprego, pro meu filho adolescente começar a trabalhar e a gente melhorar de vida”, diz com veemência.

A reportagem teve acesso ao ginásio Hermes Taurino pelos olhos de Ana Cecília. Pouco estrangeira, estava ambientada com as pessoas com quem dividia o paredão do lado direito, repleto de famílias venezuelanas. Ela contou que na Dubai as ruas também eram divididas assim, que embora todos vivessem bem, era importante manter os imigrantes unidos espacialmente.

No ginásio muitos se amontoam. Crianças e adultos se revezam na busca de um canto vago para as refeições, o banheiro não é dos mais limpos, visto que é dividido por muitos, as altas temperaturas de João Pessoa também têm tornado os locais quentes o suficiente para dificultar a dormida. Não fosse todos os aspectos estruturais que ultrapassam o desconforto, a principal reclamação é o medo de não saber para onde irá depois.

Quando ficou desempregada, Ana chegou a se inscrever no cadastro do auxílio-moradia, que é concedido no valor de R$ 350, valor abaixo da média do mercado imobiliário de João Pessoa. Ela nunca teve resposta quanto a concessão do subsídio. Os planos que faz agora dependem de um futuro incerto. Os moradores venezuelanos demonstram uma insegurança acentuada, de quem já é veterano na dúvida e no desalento.

"Eu não quero ficar aqui, não fugi da Venezuela pra isso, saímos de algo ruim pra melhorar a vida", finaliza Ana Cecília.

Antes de se despedir ela fez um pedido, ela gostaria que a reportagem buscasse alguma resposta de entidades de João Pessoa que se comprometem a prestar assistência aos imigrantes venezuelanos. A cidade possui um braço do Serviço Pastoral De Migrantes Do Nordeste (SPM-NE), que presta acompanhamento, inclusive jurídico, a muitos venezuelanos que buscam refúgio na capital paraibana.

Procurada pelo g1, a pastoral disse que se divide em prestar suporte aos venezuelanos indígenas, da etnia Warao, e aos que categorizam como "urbanos", esses que vieram e se espalharam pela cidade. Segundo a pastoral, é difícil acessar todos os venezuelanos que moram em João Pessoa, e por isso os que viviam na comunidade Dubai estavam desassistidos pelas doações e acompanhamentos da entidade.

A assistente jurídica do SPM, Maritza Ferretti Farena, afirmou que a entidade está em contato com as autoridades envolvidas no processo de desocupação para acompanhar as condições às quais estão submetidas as famílias venezuelanas. Para ela, a assistência oferecida tem sido insuficiente, bem como as políticas públicas de acolhimento aos imigrantes existentes no Brasil.

O que diz a prefeitura de João Pessoa

De acordo com Socorro Gadelha, reuniões com comissões de moradores de cada escola serão feitas a partir desta quinta-feira (2) pra "tratar da situação futura". Além disso, a secretária informou à reportagem que o auxílio-moradia deverá ser resolvido a partir da próxima semana.

Sobre alimentação e as condições de cada escola, a secretária declarou que no momento "está tudo ok".

Integrantes da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias visitaram os venezuelanos nos ginásios

Ana Beatriz Rocha/g1

A decisão do STF

O Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do ministro Alexandre de Moraes, suspendeu a decisão judicial que desocupou a área da comunidade Dubai, na zona sul de João Pessoa. A medida foi tomada nesta segunda-feira (29). A decisão atendeu um pedido do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), através de uma Reclamação Constitucional.

A decisão é de caráter liminar e cabe recurso. O relator determina que a desocupação seja suspensa com urgência e que o estado da Paraíba e o Município de João Pessoa prestem informações, especialmente sobre a capacidade de assentar as famílias eventualmente desalojadas.

Em nota, a prefeitura de João Pessoa informa que a decisão do STF determina que o Estado da Paraíba e o Município de João Pessoa forneçam informações sobre a realocação dos antigos ocupantes da área ilegalmente invadida. Além disso, devem listar nos autos todas as ações sociais e humanitárias que estão sendo promovidas pelos entes, com o acompanhamento do Ministério Público Estadual.

De acordo com o MPPB, a liminar do ministro Alexandre de Morais não autoriza o retorno das pessoas à área já desocupada. A liminar não reverte a decisão da 4ª Vara da Fazenda Pública da Capital, apenas suspende a continuidade da desocupação, caso haja atos pendentes.

Na liminar, segundo o MPPB, o ministro reconheceu que a decisão da 4ª Vara da Fazenda Pública de João Pessoa, em princípio, cumpriu o que determina a decisão do ministro Luís Roberto Barroso, prolatada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que proíbe a desocupação de áreas durante a pandemia de covid-19, mas prevê excepcionalidades como em “situações em que a desocupação se mostre absolutamente necessária para o combate ao crime organizado – a exemplo de complexos habitacionais invadidos e dominados por facções criminosas – nas quais deve ser assegurada a realocação de pessoas vulneráveis que não estejam envolvidas na prática dos delitos” - o que seria o caso da Dubai.

Já CEDH informou através que a ordem da 4ª Vara de Fazenda Pública da Capital não subsiste mais no mundo jurídico e que é digna de repúdio "a tentativa da Prefeitura de João Pessoa de criminalizar os moradores da Comunidade 'Dubai', tendo-os, indistintamente, sem individualização de condutas, como traficantes e praticantes de degradação ambiental, incluindo centenas de idosos e crianças, somando-se a isso o sofrimento oriundo das violações de Direitos Humanos já cometidas e o preconceito que as famílias terão de enfrentar doravante".

*Sob supervisão de Krys Carneiro

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Fonte: G1/PB
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