Paraíba

'Dar nome ao que nos torna diferente': autistas falam de diagnóstico, vida e trabalho

Por PCV Comunicação e Marketing Digital

30/04/2023 às 11:43:53 - Atualizado há
No Abril Azul, mês que aborda a conscientização sobre o autismo, pessoas autistas falam de suas experiências sobre o mundo e sobre tudo o que lhes cercam. Fita quebra-cabeça é o símbolo do Transtorno do Espectro Autista

Reprodução

Rainá Costa de Figueiredo tem 33 anos. É de Rondônia, mas desde que foi aprovada num concurso público para tabeliã e registradora civil de um cartório de Olivedos, na Paraíba, se fixou em Campina Grande. Três anos atrás, em 2020, quando ainda morava em Porto Velho, foi atrás de respostas para algumas dúvidas que tinha com relação à própria vida. E, então, recebeu a confirmação de um diagnóstico sobre algo que já suspeitava. Ela era uma pessoa autista.

Para muitos, poderia ser um diagnóstico pesado, repleto de estereótipos ou medos, muita desinformação, algum grau de incerteza. Não era esse o caso dela. A confirmação do diagnóstico, ao contrário, foi um marco importante. Libertador. Para lá de esclarecedor para si.

“O laudo foi fundamental para eu me compreender sensorialmente”, reflete Rainá.

Ela destaca que passou por momentos difíceis ao longo da vida, porque o que era bom e fácil para outras pessoas nem sempre era para si. E não saber por que isso acontecia lhe trazia dúvidas, incompreensões, inseguranças. Foi assim na infância, foi assim na adolescência, foi assim na vida adulta. Até que, de repente, percebeu que precisava de respostas.

“Eu sempre fui diferente. Eu nunca consegui me encaixar. E olhe que eu já tentei muito”, explica.

Rainá Costa é autista e recebeu o diagnóstico de forma tardia

Arquivo Pessoal/Tainá Costa

O preconceito, no entanto, às vezes está presente inclusive entre os profissionais da medicina. Rainá conta que foi atrás de um primeiro neurologista, que desdenhou de suas dúvidas sobre ser ou não autista.

“Meu primeiro diagnóstico foi um 'tanto faz'. Mas eu disse a ele que era importante saber. Que não saber interferia em minha qualidade de vida, em meu autoconhecimento, em minha existência”, relembra.

Rainá Costa, então, deixou o consultório daquele médico. Nunca mais voltou. Mas não iria desistir. Nos meses seguintes, passou por um neuropsicólogo, ele próprio autista, e depois por um segundo neurologista, reconhecido pelo seu tratamento humanizado com pessoas autistas. De ambos, saiu com o mesmo diagnóstico. Ela era uma mulher autista de suporte 1 (numa escala de 1 a 3, definida a partir da necessidade de apoio que a pessoa possui).

“Quando a gente recebe o diagnóstico, a gente começa a dar nome ao que nos torna diferente. A gente pode dizer: olha, eu existo, eu sou assim, é assim que eu funciono”, ensina Rainá.

Formada em Direito, casada, mãe de três filhos, Rainá sabe rir de si mesma. Não raro, ao relembrar dos tempos de escola, solta uma risada alta. Mas, ela não romantiza. Admite que foi um período difícil, doloroso. De toda forma, é como se a consciência de quem é, possibilitada justamente pelo diagnóstico, lhe permitisse viver com mais leveza.

“Eu só fui ter um amigo por volta de 14 ou 15 anos. Eu tinha muito desconforto na escola. Era muito barulhento. E eu achava que os adolescentes fediam muito. E eu falava: 'nossa, você está fedendo'. Mas hoje eu sei que não é o ideal, porque as pessoas guardam rancor”, declara, antes de soltar mais uma risada. “Para ser minha amiga, a pessoa tem que ser insistente. E não pode ser pegajosa, não pode cobrar demais”, brinca.

Rainá destaca que sua condição de pessoa autista a torna muito funcional. Então, às vezes, um papo desinteressado, que as pessoas em geral adoram, não faz o menor sentido para ela. E essas são algumas questões que tornam a interação mais difícil. “Quando a professora falava: 'formem grupos'. Eu sempre era do último grupo, das pessoas que sobravam”.

Certa vez, quando ela tinha algo em torno de dez anos, quis ir para o carnaval. A irmã mais velha adorava a festa e Rainá queria seguir os passos dela. Pediu à mãe, implorou, insistiu. Até que recebeu a autorização para ir à folia.

“Quando eu cheguei lá, era uma selva pior que a escola. Queria ir embora na mesma hora. Não gostei do barulho, de gente suada perto de mim, do cheiro de cerveja no chão, do cheiro de cigarro”, conta. “Só depois eu fui entender que o que é legal para uns, não é necessariamente legal para mim”, completa.

Rainá Costa em atuação no Cartório de Olivedos, onde é tabeliã

Tainá Costa/Arquivo Pessoal

Outro ponto problemático era a desinformação das pessoas em geral. Os professores e coordenadores não sabiam que ela era autista. Nem ela mesma sabia, aliás. Para completar, a menina não se adequava à forma como o ensino era passado. E o veredito era simplista, errado, e em certo sentido, violento.

“Eu passei por três escolas na minha vida. Nas três escolas, me disseram que eu não tinha base. Base! Ainda hoje eu não sei o que é não ter base”, enfatiza Rainá.

Em resumo, a tabeliã explica que precisa de rigidez, método, rotina. Se funciona, não tem para quê mudar. “Eu sempre faço o mesmo caminho, eu sempre faço as coisas da mesma forma, eu sempre sigo o que diz os manuais”, prossegue.

Ao falar de sua vida amorosa, inclusive, arremata:

"Eu só namorei uma pessoa na vida. Foi com 15 anos. Ele combinou comigo”, explica Rainá, se referindo ao companheiro que está com ela até hoje.

É por tudo isso, pois, que ela diz ser tão importante um diagnóstico precoce. “Eu sempre falo que sou autista por um motivo especial. Porque isso pode ajudar outras pessoas. Eu não quero que a pessoa sofra, se sinta deslocada da forma como eu me senti por muitos anos na vida”.

Por exemplo, ela é enfática ao dizer que se tivesse recebido um diagnóstico precoce, não teria sofrido tanto na escola. De forma que o diagnóstico é essencial.

“O mundo está cheio de autistas adultos não diagnosticados”, resume.

Rainá com o seu companheiro, Paulo, e os filhos Samuel, Luiz Davi e Moisés

Instragram/Reprodução

“Não é uma doença, mas precisamos de suporte”

Psicanalista e bacharelando em fonoaudiologia, Gilvan Rangel é outra pessoa autista que teve diagnóstico tardio. Ele tem suporte 2 e atualmente está com 36 anos. E só começou a investigar sobre sua situação depois que o filho nasceu e recebeu o seu próprio diagnóstico. Para ele, um maior esclarecimento da população sobre a questão está permitindo que mais diagnósticos aconteçam.

Para além disso, as pessoas autistas de décadas atrás, que antes eram crianças, hoje estão crescendo, ganhando voz, falando sobre suas existências.

“Trinta anos atrás, pouco se falava do assunto. As pessoas autistas daquela época eram invisibilizadas. Muitas eram segregadas. Mas hoje nós estamos falando sobre nós mesmos”, destaca.

É ele quem explica que não se trata de uma doença, mas uma condição, uma identidade. “Não é doença porque não tem um marcador biológico. Nem é algo comportamental, porque não dá para deixar de ser”, explica.

Segundo o Ministério da Saúde, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um “distúrbio do neurodesenvolvimento caracterizado por desenvolvimento atípico, déficits na comunicação e na interação social e padrões de comportamentos repetitivos”.

As pessoas neuroatípicas, pois, apenas possuem características diferentes das que são neurotípicas. E, nas palavras de Gilvan, “está tudo bem” ser diferente.

"Não tem muito segredo. Mas o senso comum vê como doença, como algo pesado. Já fomos tratados como loucos, mas a gente está desmistificando isso. Nós estamos lutado pela nossa identidade", enfatiza.

Gilvan Rangel com sua esposa Samara e com seu filho Leon

Gilvan Rangel/Arquivo Pessoal

Gilvan Rangel faz uma comparação didática: “É a mesma coisa de uma pessoa canhota num mundo inteiro que é feito para os destros. Essa pessoa vai se sentir excluída. Mas o mundo precisa se adaptar a essa condição”.

Ele ensina, inclusive, que, justo por não ser uma doença, o certo para ele seria se referir à “pessoa autista” ou “pessoa com transtorno do espectro autista”. Jamais, falar em “pessoa com autismo”.

“Não é uma doença, é uma condição natural humana. Não existe remédio para autismo, existe remédio para comorbidades específicas que os autistas possuem”, exemplifica. “Autista é o que a gente é. É a nossa condição. É como enxergamos o mundo”, prossegue.

Ao mesmo tempo, ele destaca que é preciso combater a romantização da condição dos autistas. Pessoas, muitas vezes familiares, que tratam os autistas como inocentes, coitadinhos, puros, anjos azuis.

“Isso atrapalha muito. Nós não somos inocentes. Apenas a sinapse de nossos cérebros funcionam diferente”, comenta.

Ele diz que pessoas autistas podem ter, em diferentes intensidades, dificuldade de comunicação e interação social, hipersensibilidade sensorial a sons e luzes, seletividade alimentar, rigidez cognitiva, dificuldade de se adaptar a novas rotinas, entre outras características. E que, justo por isso, o mundo precisa entender melhor a realidade dessas pessoas. “Não existe suporte 0”, arremata.

Gilvan e Leon: foi o diagnóstico do filho que levou ao diagnóstico do pai

Gilvan Rangel/Arquivo Pessoal

"Falta a rampa para a gente"

De acordo com dados de 2020 do Centro de Controle de Prevenção e Doenças dos Estados Unidos, 1 em cada 36 pessoas do mundo são autistas. Isso significa que, apenas no Brasil, seriam quase seis milhões de pessoas neuroatípicas no país. Um número considerável, que ainda por cima pode estar subnotificado.

“Nós somos muitos”, resume Gilvan.

Aliás, Gilvan e Rainá são unânimes para falar que o mercado de trabalho é um dos grandes desafios para o futuro das pessoas autistas.

Gilvan, por exemplo, destaca que em 36 anos de vida só acumulou dois anos de carteira de trabalho assinada, justamente pela má vontade das empresas de se adaptarem à realidade dos autistas.

“A maioria das vagas requerem habilidades de comunicação. E as seleções em geral acontecem a partir de dinâmicas de grupos. Mas isso é uma barreira para a gente. Então a pessoa é competente, tem as habilidades, mas a seleção filtra”, lamenta.

Autistas no mundo

Rainá Costa concorda. E confirma que, na visão dela, o mercado de trabalho ainda não se adaptou às pessoas autistas. “Eu penso que o lugar mais seguro para o autista é o concurso público. Porque lá não se pode negar as adaptações, os direitos. Numa relação de particular com particular, a probabilidade de assédio, discriminação, é muito maior”, reclama.

Sobre a questão, Gilvan mais uma vez apela para as comparações. E diz que, da mesma forma que no passado as empresas precisaram se adaptar às pessoas com deficiência com a colocação de rampas nos prédios, chegou a hora dessas mesmas empresas pensarem em ambientes mais acolhedores para as pessoas autistas. "Falta a rampa para a gente".

Avanços importantes, mas é só o começo

São duas as leis principais que regem os direitos dos autistas no Brasil. A primeira é a lei 12.764 de 27 de dezembro de 2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. É ela que define o autista como pessoa com deficiência. A propósito, ela é conhecida também por Lei Berenice Piana, em reconhecimento à mulher que levou ao Senado Federal o primeiro projeto de lei de iniciativa popular do país.

Paulo da Luz, que é pai de uma criança autista e é presidente da Comissão de Estudos e Defesa dos Direitos dos Autistas da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Paraíba, é enfático:

“Trata-se da primeira legislação que trouxe efetivamente uma política pública para a pessoa autista. Antes, vivíamos num limbo”, destaca.

Paulo da Luz, presidente da Comissão de Estudos e Defesa dos Direitos dos Autistas da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Paraíba

Paulo da Luz/Arquivo Pessoal

Ele comenta que, no passado, era comum os médicos e a sociedade em geral tratarem a pessoa autista como esquizofrênica, mas que isso está mudando. E a lei de 2012 foi importante em todo esse processo. “As coisas começaram a mudar ali”, opina.

Sobre a questão de reconhecer a pessoa autista como uma pessoa com deficiência, Paulo comenta que isso foi uma decisão estratégica, com objetivos muito claros de avançar nas políticas públicas em defesa dessa parcela da população.

“As políticas públicas para as pessoas com deficiência já estavam mais avançadas. E os autistas se encaixaram nesse cenário”, explica o jurista.

Ele frisa que a dificuldade de diagnosticar uma pessoa autista está no fato de ser uma condição que “não tem cara”. Então, o que muitas vezes era visto no passado como uma criança malcriada, que faz birra, “estranha”, era apenas uma pessoa autista. Que não era compreendida como tal por aqueles que a cercavam.

Sobre o tema, Rainá Costa concorda. Ao mesmo tempo, apresenta uma outra visão, mais crítica, principalmente quando se trata de diagnosticar um adulto autista, tal como foi o caso dela.

“Eu não entendo por que os médicos têm tanta dificuldade de diagnosticar um adulto. A vida daquela pessoa no mundo não mente. A forma como o mundo se relaciona com essa pessoa é muito sincera, muito característica”, explica.

Inclusive, em consonância com o que diz Paulo, ela destaca que a criação de leis que definem os direitos dos autistas trouxe um ganho principalmente para os adultos: “A informação já está um pouquinho mais espalhada. As pessoas em geral tinham em mente um autista criança, mas não projetavam que essa criança iria crescer”.

Com relação à segunda legislação sobre o tema, trata-se da Lei 13.977 de 9 de janeiro de 2020, que modifica alguns artigos da Lei Berenice Piana para criar a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea). É ela quem reforça direitos já previstos no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146 de 6 de julho de 2015) e prevê, por exemplo, o direito de vagas preferenciais de estacionamento e prioridade em filas de atendimento para pessoas autistas.

Para além disso, a Ciptea traz informações sobre dados da pessoa autista, grau de suporte, endereço e cuidadores que podem ser contatados em caso de crise.

“A Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista evita abordagens erradas. E é uma primeira ideia para se saber de fato quantos são e qual o grau de afetação de cada um dos autistas do Brasil. Não se faz política pública sem informação”, esclarece Paulo da Luz.

Paulo da Luz e o seu filho Pedro

Arquivo Pessoal/Paulo da Luz

No fim de tudo, nos estertores do Abril Azul, do Mês de Conscientização sobre o Autismo, Gilvan e Rainá só querem mesmo entender as próprias vidas. A forma como veem o mundo. Querem seguir em frente. Serem felizes. E, enquanto consultores da OAB-PB para questões sobre autismo, ajudar outras pessoas autistas a trilharem o mesmo caminho. De preferência, de forma muito mais fácil.

“Com o diagnóstico, a gente consegue se entender melhor. Passa a entender o jogo da vida. O grande teatro do neurotípico”, comenta Gilvan.

"Ao longo da vida, a gente aprende a imitar os outros, a se camuflar, para se passar despercebida. Mas a falta de sentido em imitar o outro incomoda. E é aí que a gente grita. É um processo", finaliza Rainá.

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Fonte: G1/PB
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