Paraíba

Guerra na Paraíba: historiadora apresenta nova versão sobre a conquista das terras potiguara

Por PCV Comunicação e Marketing Digital

08/05/2021 às 15:37:41 - Atualizado há
Tese de doutorado de Sylvia Brito expõe realidade bem diferente da oficial: conquista da Paraíba no Século 16 foi um feito militar de alta prioridade da Espanha que durou mais de 40 anos de conflitos e a cidade conhecida hoje por João Pessoa não nasceu em 5 de agosto de 1585. Representação de mapa do Brasil de 1516

Biblioteca Nacional da França/Reprodução/Tese de Sylvia Brito

A cena tem ares épicos. São 14 embarcações ancoradas em alto mar, há alguns quilômetros de distância da costa que, no futuro, passaria a ser conhecida por praia de Cabo Branco, na Paraíba. Entre mil e dois mil homens de guerra e marinheiros estão a bordo. E boa parte daquelas embarcações são naus militares espanholas de grande porte, altamente equipadas, que compõem a elite do que à época era a maior armada do mundo.

É uma manhã de domingo, 8 de abril de 1584, e alguns dos combatentes mais experientes e bem armados daqueles tempos estão em torno da maior força marítima já reunida para navegar em mares brasileiros até então. E o objetivo é tentar algo que nunca antes se havia conseguido. Adentrar com êxito pelo rio Paraíba, pacificar os índios Potiguara que dominavam a região e finalmente conquistar a última parte da costa leste brasileira que ainda não estava sob o domínio da coroa.

Aquela expedição, aliás, havia se iniciado três anos antes, em 1581, numa época de unificação da Península Ibérica, em que o Rei Filipe II, de Espanha, governava as coroas espanhola e portuguesa e comandava uma monarquia cujo sol jamais se punha, visto que essa se prolongava de leste a oeste do globo terrestre.

Naqueles tempos, contudo, o rei castelhano estava especialmente interessado na defesa do Atlântico Sul, a fim de expulsar corsários, contrabandistas e piratas de diferentes nacionalidades que a todo o momento realizavam saques nas colônias do além-mar. E, para que isso fosse possível, a conquista da Paraíba, território geograficamente estratégico, era da mais alta prioridade para o monarca.

Toda essa história, a propósito, é contada pela pesquisadora paraibana Sylvia Brito, historiadora formada pela Universidade Federal da Paraíba e que defendeu em novembro de 2020 a sua tese de doutorado na Universidade de Salamanca, na Espanha. Ela realizou uma rigorosa pesquisa em documentos espanhóis, descobriu uma série deles que até os dias de hoje se mantinham inéditos, e em sua tese propõe uma drástica mudança na historiografia paraibana.

Sylvia Brito, doutora em História pela Universidade de Salamanca, na Espanha

Arquivo Pessoal/Sylvia Brito

Até então, era quase um consenso acreditar que a conquista da Paraíba era obra de um “mero acaso histórico”, mas a vasta documentação apresentada por Sylvia ao longo de 522 páginas e 1.471 notas demonstra algo completamente diferente: a conquista da Paraíba era uma prioridade da Monarquia Ibérica de Filipe II. Mas a missão de subjugar os Potiguara se demonstrou uma empresa tão difícil, tão violentamente rechaçada, tão sangrenta, que se prolongou ao longo de mais de 40 anos de batalhas, mortes, derrotas e vitórias de ambos os lados.

O Arquivo de Simancas

O G1 teve acesso em primeira mão à tese, intitulada “A Conquista do Rio Ruim: a Paraíba na Monarquia Hispânica (1570-1630)”, que deve se transformar em livro em breve. Ou livros. Conversou também em mais de uma oportunidade com Sylvia Brito, sempre por telefone ou videochamada, já que ela segue morando na Espanha. E, em meio aos papos, a autora falou sobre todo o processo de produção da pesquisa e sobre as descobertas inéditas que obteve. Todas as informações que constam nesta matéria, portanto, saíram dessas leituras e conversas.

Sylvia Brito explica que a maior parte do trabalho árduo aconteceu no Arquivo Geral de Simancas, um suntuoso castelo localizado no pequeno município de mesmo nome (que fica a 108km de Salamanca), fundado no longínquo ano de 1540 e que ainda hoje funciona como arquivo institucional da Monarquia Espanhola. Um município “no meio do nada”, com pouca estrutura, dotada de apenas algumas cafeterias, o que tornava o seu esforço de pesquisa ainda mais penoso.

Arquivo Geral de Simancas, construção de 1540 e que ainda hoje funciona como arquivo da Monarquia Espanhola

Arquivo Pessoal/Sylvia Brito

Em princípio, seu interesse era com a presença holandesa no Nordeste brasileiro, um episódio muito mais ligado com a história da capitania de Pernambuco, mas não demorou muito para Sylvia perceber o grande acervo de documentação sobre a história paraibana que até então era desconhecida por historiadores do mundo inteiro. Mudar o foco de pesquisa, assim, foi questão de tempo.

“Tive acesso a documentos que ninguém tinha pesquisado ainda e descobri muita coisa importante sobre a Paraíba. No período hispânico, ela era muito mais falada do que Pernambuco”, explica.

O trabalho era intensivo. Extenuante. Sylvia comenta que o Arquivo não tem acervo digitalizado e não é permitido entrar no local com caneta e papel. Ela ia, então, munida apenas com o laptop, e se deparava com calhamaços e mais calhamaços de documentos com mais de 400 anos de existência. Escritos à mão e em idiomas latinos dos séculos 16 e 17. Lia-os, tomava nota no computador do que julgava importante, seguia em frente. “Acho que eles querem que o historiador passe pelo ritual de pesquisa”, reflete.

Arquivo Geral de Simancas: calhamaços grandes com manuscritos do Século 16

Arquivo Pessoal/Sylvia Brito

Foram mais de dois anos catalogando absolutamente tudo o que havia de registro documental sobre a Paraíba. E era muito material mesmo. Ela chegava às 8h30, todos os dias, e ficava até 14h, horário em que o prédio público cerrava suas portas.

“É um diálogo respeitoso com os mortos”, filosofa Sylvia Brito.

Era um exercício de garimpagem mesmo. Às vezes, demorava-se dois ou três dias para se conseguir uma única informação relevante. Noutras, um novo documento levava os estudos para rumos completamente distintos. Num processo que muitas vezes a deixava completamente cansada, desgastada intelectualmente. Até que, pouco a pouco, a partir de documentos e relatos dos mais diversos, o passado foi sendo descortinado.

Para Sylvia, a quantidade de documentos inéditos encontrados mostra toda a lacuna que existia sobre a própria história da Paraíba. De acordo com ela, para além da ocupação portuguesa, estuda-se muito sobre o Brasil francês, que durou meros cinco anos; estuda-se muito sobre o Brasil holandês, que durou 24 anos; mas quase não se estuda sobre o Brasil espanhol, que durou 60 anos. “É justamente neste período em que está a maior parte da documentação sobre a conquista da Paraíba”, explica.

Sylvia Brito com um colega pesquisador em frente ao Arquivo Geral de Simancas

Arquivo Pessoal/Sylvia Brito

A criação da Armada do Estreito

As forças portuguesas ocuparam a faixa de terra litorânea daquilo que seria conhecido por Brasil em 1500. Trinta anos depois, em 1530, Portugal dividiu essa área em 15 capitanias hereditárias para dar início ao processo de povoamento e ocupação da terra, com o objetivo assim de firmar a conquista da região. Esse processo, no entanto, era lento e pouco eficiente na maior parte do território, de forma que décadas depois essa conquista ainda não estava totalmente garantida.

Nas cercanias do que hoje é a Paraíba, já existiam as capitanias de Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Rio Grande. O território paraibano de hoje em dia estava dentro de Itamaracá, mas era uma área inóspita, de brava e violenta resistência potiguara, em que os portugueses simplesmente não conseguiam se fixar.

Ao longo dos 50 anos seguintes, inclusive, foram várias as incursões portuguesas, a partir de Pernambuco, para as proximidades do Rio Paraíba, todas rechaçadas pelos povos indígenas que habitavam a área. Era um dos principais focos de resistência contra a ocupação daquelas terras pelos invasores lusitanos, que seguidamente eram derrotados. E que abria margens para a ação de contrabandistas de todo o tipo. Ingleses e holandeses também. Mas principalmente de franceses, que tinham firmado uma aliança com os Potiguara e exploravam o pau-brasil da região sem nenhum tipo de controle por parte da coroa portuguesa.

Até que, em 1580, após uma crise sucessória no trono de Portugal, cujo rei morreu sem deixar herdeiros, o rei de Espanha, Filipe II, arvorou para si o trono do país vizinho. Foi um período de conturbações, conflitos internos, invasões, até que ele foi referendado rei dos dois países em 1581. Estava formada a chamada União Ibérica, período de 60 anos em que os dois países seriam governados por um mesmo rei espanhol. Também chamado de Período Filipino, já que o comando ao longo das seis décadas seguintes ficou com Filipe II (entre 1581 e 1598), Filipe III (entre 1598 e 1621) e Filipe IV (entre 1621 e 1640).

O que importa aqui, no entanto, ao menos por ora, é que Filipe II, enquanto rei de Portugal e de Espanha, deu uma prioridade às colônias do Atlântico Sul que os reis portugueses nunca tinham dado. E logo no seu primeiro ano de gestão definiu como missão o controle definitivo da área para expulsar de vez os piratas que, na visão dele, saqueavam principalmente o litoral brasileiro e as minas de ouro peruanas. A América do Sul, assim, entrava no foco do maior império do mundo de então.

O Nordeste brasileiro no Século 16 e o Atlântico Sul: a conquista da Paraíba virava prioridade para Filipe II

Reprodução/Google Earth

Era preciso para tanto ter o controle do Atlântico e impedir o acesso dos piratas e corsários ao Oceano Pacífico, algo que à época só era possível pelo Estreito de Magalhães, no extremo sul do que hoje é a Argentina. Foi daí que surgiu a ideia inicial de se criar uma poderosa armada militar para povoar e fortificar o Estreito, numa área de difícil acesso e de mares revoltos. Uma ideia, aliás, do navegador Pedro Sarmiento de Gamboa, que esperava ser o comandante da expedição.

No fim das contas, contudo, o rei acatou a ideia de se criar a armada, mas colocou no comando o condecorado capitão-general Diego Flores Valdés, um dos nomes mais experientes da Armada Espanhola e que já tinha mais de 30 anos de carreira. Mas havia um detalhe: apesar do nome oficial da expedição ser Armada do Estreito, o objetivo secreto era a conquista da Paraíba.

Em suas pesquisas, Sylvia Brito encontrou uma série de documentos que comprovam que a incursão da Armada a Paraíba já era prevista antes mesmo dela zarpar do porto de Sanlúcar de Barrameda, na Espanha. Essa informação, contudo, estava restrita ao alto-comando, entre outros motivos para evitar que os piratas e corsários fossem previamente avisados de que eles eram o alvo principal da ofensiva.

São essas questões todas reunidas, alerta Sylvia Brito, que interferiram naquilo que seria contado nos séculos seguintes pela historiografia oficial. Em primeiro lugar, ela pondera que a unificação da Península Ibérica não era um consenso. E que, muito por causa disso, houve uma tentativa de apagamento dos feitos espanhóis por parte de historiadores portugueses daqueles tempos. Depois, Pedro Sarmiento de Gamboa e seus aliados, que discordavam do posto de comando de Valdés, tentavam sempre diminuir e criticar as suas ações, de forma que passaram a disseminar a ideia de que a conquista da Paraíba foi uma espécie de prêmio de consolação após o fracasso da ocupação do Estreito. Ademais, o fato de o verdadeiro objetivo da missão ter sido mantida restrita a alguns poucos só ajudou a confundir ainda mais as pessoas.

De toda forma, os documentos, para ela, são irrefutáveis:

“Com os Filipes, a Paraíba se torna uma área militar estratégica. Um anteparo para proteger a colônia, já que era a terra mais próxima do reino pelo mar. Figuras importantes da Monarquia Hispânica são realocadas para a Paraíba. Encontrei uma vasta documentação oficial administrativa. Coisas impressionantes. Uma quantidade imensa de documentação da pequenina Paraíba”, enfatiza Sylvia.

Entre esses documentos, ela cita especificamente os manuscritos de Pedro de Rada, que participou da expedição com Diego Flores Valdés e foi o escrivão e cronista da viagem, relatando em minúcias tudo o que se seguia naquelas aventuras – e desventuras. A importância desses escritos está no fato dele ter permanecido em arquivos particulares durante mais de quatro séculos e só recentemente ter sido aberto para consulta pública.

Trecho dos manuscritos de Pedro de Rada, aberta à consulta pública após mais de 400 anos

Reprodução/Tese de Sylvia Brito

Os infortúnios de Diego Flores Valdés

A Armada do Estreito deixou o porto espanhol em 25 de setembro de 1581. Era uma monstruosidade jamais vista: 23 naus, 1.332 soldados, 672 marinheiros, 670 homens que iriam para o Chile, 206 famílias que tentariam chegar ao Estreito de Magalhães com o objetivo de povoá-lo. Ao todo, mais de 3.500 pessoas reunidas. O objetivo era primeiro chegar ao Rio de Janeiro. Depois, se dividir em missões específicas.

No fim de tudo, uma pequena parte dividida em cinco naus, sob o comando de Pedro Sarmiento de Gamboa, “fracassou miseravelmente” na tentativa de chegar ao Estreito, mas conseguiria reforçar pequenos assentamentos espanhóis localizados no sul da Patagonia; já a força militar principal, sob o comando de Diego Flores Valdés, partiria para a conquista da Paraíba. Mas esse seria um processo lento. Doloroso. Quase interminável.

Aliás, é difícil determinar quanto tempo se esperava gastar até chegar à orla paraibana. Mas, certamente, ninguém imaginava que seria algo tão penoso e demorado. Parecia que tudo daria errado, tão logo a viagem começou.

Após cinco ou seis dias de calmaria, a armada enfrentou terríveis tempestades. A expedição nem mesmo saíra do território espanhol e quatro naus afundaram, com o registro de mais de 800 mortes. Muitos familiares e alguns dos principais capitães de Valdés morreram nesse primeiro incidente, segundo as pesquisas e os escritos de Sylvia.

Escritos sobre a conquista da Paraíba: documentos inéditos mostram a importância da região para a União Ibérica

Arquivo Pessoal/Sylvia Brito

A solução encontrada pelo comandante foi aportar na Baía de Cadiz, ainda na Espanha, para tentar reorganizar suas forças. Foram mais de dois meses no local, sem que a maré de azar passasse. Doenças, problemas de navegação, adversidades climáticas, novos naufrágios foram alguns dos percalços registrados até a Armada do Estreito finalmente seguir viagem na manhã de 9 de dezembro. Para se ter uma ideia da dimensão dos estragos, apenas 16 naus e 2.408 pessoas a bordo deixaram Cadiz.

A travessia do Atlântico não foi menos penosa. Demorou-se um mês até a armada chegar na ilha de Santiago, em Cabo Verde, última parada antes da travessia oceânica. No local, relatos indicam que ao menos 50 soldados deserdaram. E, quando a viagem finalmente seguiu pelo Atlântico, ao longo de 53 dias até chegar ao Rio de Janeiro, mais 150 pessoas morreram e várias ficaram doentes devido às condições insalubres das naus. No Rio, outros 150 enfermos ao menos também morreram enquanto eram tratados em terra firme.

Foram sete meses de dificuldades no Rio de Janeiro, já que na época a cidade ainda era minúscula e não tinha condições de abrigar tantas pessoas extras. A armada aguardava a melhoria do tempo e, para além disso, reforços vindos da Espanha. Com suprimentos e novos homens.

Depois desses sete meses de estadia no Rio de Janeiro, e a partir de outubro de 1582, foram três tentativas de Pedro Sarmiento de chegar ao Estreito de Magalhães, todas fracassadas. Mas a parte que interessa aqui foi protagonizada por Diego Flores Valdés. Nesse mesmo período, a partir de outubro de 1582, o comandante da armada combateu a presença de corsários ingleses na região entre Rio de Janeiro e Santos, colaborou com a construção de um forte nessa segunda cidade e aguardou a chegada dos prometidos reforços vindos da Europa, o que aconteceu em abril de 1583. Em 2 de junho daquele ano, Valdés partia para a Bahia. E, após mais oito meses de espera e preparações em terras baianas, viajou para Pernambuco, de onde sairia para finalmente tentar a conquista da Paraíba.

Emboscadas e cercos potiguaras: uma guerra sem fim

A historiadora Sylvia Brito diz que, quando está em João Pessoa, a capital do que hoje é a Paraíba, gosta de caminhar por Cabo Branco, atualmente uma pacata e aprazível praia urbana, e imaginar os episódios históricos e impressionantes que foram registrados naquele abril de 1584. De fato, era um cenário absolutamente distinto.

Praia de Cabo Branco hoje: quem passa pela região e admira suas belezas, não imagina a guerra que se travou nas proximidades dessas águas

Eduardo Fechine

Diego Flores Valdés deixou a Bahia em 29 de fevereiro de 1584 e chegou em Olinda em 19 de março. Lá, ficou decidido que uma força terrestre partiria em direção à Paraíba em 5 de abril, enquanto a armada partiria no dia seguinte, uma hora antes de amanhecer.

Foi uma viagem relativamente rápida por mar. As primeiras embarcações chegaram ao litoral paraibano, na altura de Cabo Branco, no dia 7. Mas as forças só estariam completas no domingo, 8 de abril. Sylvia explica que, da Armada do Estreito original, quatro grandes naus ainda faziam parte da frota. Somavam-se a ela mais uma nau espanhola, de grande porte, que fazia parte da frota enviada um ano antes com reforços e que tinha se encontrado com Valdés ainda no Rio de Janeiro; e uma caravela portuguesa.

Além disso, Valdés requisitou na Bahia e em Pernambuco outros dois navios e dois barcos de pequeno porte, uma galeota (embarcação de pequeno porte a remo) e três embarcações indígenas. Isso porque ele colhera informações de que a foz do rio Paraíba era muito rasa e inavegável por barcos grandes. Esses, portanto, permaneceriam em alto-mar e todo o ataque à costa aconteceria nas embarcações menores.

Percurso feito por Flores Valdés do Rio de Janeiro até finalmente chegar a Paraíba, em 1584

Reprodução/Tese de Sylvia Brito

A ação militar se iniciou ainda pela manhã. Quatro naus francesas menores, que faziam retirada de pau-brasil da região, abriram fogo contra as forças ibéricas. Mas a diferença era descomunal e os franceses foram rapidamente derrotados. A partir daí, 350 homens foram mobilizados para explorar o lugar.

Quando os espanhóis começaram a entrar no rio, os Potiguara ergueram uma bandeira branca indicando paz. Flores Valdés tomou a frente do grupo e iniciou a navegação pelo rio, sem suspeitar de que se tratava de uma emboscada. Quando os invasores já subiam o rio, houve um contra-ataque feroz, que deixou o próprio comandante ferido, com uma flecha cravada no peito. Ele, contudo, sobreviveria.

“As naus não conseguiam entrar no rio. Então ficavam todas ancoradas em Cabo Branco e os soldados espanhóis passavam para barcos pequenos e subiam o rio Paraíba. Lá, eram atacados pelos Potiguara. É uma cena cinematográfica”, indica a historiadora, resgatando os acontecimentos daquele dia e de outros seguintes.

Os três primeiros ataques foram completamente rechaçados. Dias depois, contudo, as forças terrestres que tinham saído de Pernambuco começavam a se aproximar da Paraíba. Os Potiguara perceberam isso e recuaram alguns quilômetros para o interior, para as proximidades da Serra da Capaoba, região onde hoje estão os municípios de Belém, Serra da Raiz, Caiçara e Duas Estradas.

É quando os soldados ibéricos adentram o rio pela primeira vez na história, chegam à região onde hoje fica o município de Santa Rita e fundam na margem esquerda o Forte de San Phelipe y Sanctiago, a primeira instituição da Paraíba. Lá, constroem também uma igreja. Ambos finalizados ainda em maio. “É a política da cruz e da espada. Fundam um forte e uma igreja. Sempre um do lado do outro”, explica Sylvia.

O comando do forte, um dos mais importantes do litoral brasileiro, é entregue a um famoso militar hispânico, Francisco de Castrejón, que fica com mais 110 soldados para proteger o local e com provisões para sete meses. E a cidade, que deveria surgir nas proximidades do forte, é entregue ao comando de Frutuoso Barbosa.

Diego Flores de Valdés então retorna à Espanha em maio de 1584 para repassar as boas novas sobre a conquista da Paraíba. O clima é de festa. Trovadores escrevem sobre as façanhas nas novas terras. Começa-se a fazer planos para povoar a região. Trazer novos colonos. Mas a verdade que fica para trás, em terras ainda majoritariamente potiguara, é completamente diferente.

Flores Valdés chega de volta à Espanha em 19 de julho de 1584, quase três anos depois de partir

Reprodução/Tese de Sylvia Brito

As forças pernambucanas, que haviam avançado por terra, resolvem adentrar o interior à caça dos Potiguara. São praticamente dizimados, mais de 450 pessoas morrem, e os poucos sobreviventes voltam destruídos para Pernambuco.

Depois disso, os indígenas Potiguara retornam ao litoral e realizam um intenso cerco ao forte. Mas de 10 mil indígenas impedem o trânsito em torno dele. Ninguém entra, ninguém sai, ninguém nem mesmo se aproxima sem ser atacado. A sonhada cidade não sai do papel. Frutuoso Barbosa, o suposto gestor, abandona a Paraíba fugido em direção a Pernambuco.

Os soldados, impedidos de explorar a região, precisam consumir exclusivamente as provisões deixadas por Valdés, que rapidamente começam a faltar. A situação é de penúria e sofrimento, os apelos por ajuda de Pernambuco não surtem efeito. Os soldados da coroa são atacados diariamente, começam a passar fome e sede, chegam ao ápice de precisar comer carne de cavalo para sobreviver.

Um ataque derradeiro de Pernambuco, com o objetivo de salvar o forte, e que reúne 500 homens, é rechaçado pelos Potiguara, mais uma vez vitoriosos. Muitos morrem. Até que, por volta de julho de 1585, os hispânicos que restam no forte admitem a derrota. Não há mais o que fazer por ora. O desastre é uma realidade. Incendeiam tudo o que fora construído e fogem por uma nau deixada no litoral.

A primeira aventura espanhola na Paraíba, a terra dos Potiguara, só dura pouco mais de um ano. Só ficaram as ruínas e o nome do lugar. “Forte Velho”, uma região de Santa Rita conhecida até hoje por esse apelido.

Região de Forte Velho nos dias de hoje: da época em que se construiu a primeira instituição da Paraíba, ficou apenas o apelido

Divulgação/Prefeitura Municipal de Santa Rita

A fundação de Filipeia de Nossa Senhora das Neves

Uma das maiores provas da prioridade que era a conquista da Paraíba para Filipe II está, talvez, no fato de que, mesmo depois da derrota acachapante de julho de 1585, a missão seguia firme. E, não tardou, uma nova expedição foi enviada para a Paraíba. Desta vez, contudo, a estratégia inicial foi diferente e pensada por um homem chamado João Tavares.

À época, os Tabajara e os Potiguara viviam tempos de pacificação e de aliança mútua, o que tornava impossível qualquer tentativa de ocupação ibérica da área. Mas era uma paz que Sylvia Brito descreve como “precária e transitória”. E João Tavares sabia disso. A missão, portanto, consistia em enviar uma caravela de Pernambuco para a Paraíba (com oito portugueses e 12 castelhanos), firmar a pacificação dos ibéricos com os Tabajara e provocar com isso a retomada dos conflitos destes com os Potiguara.

A missão foi um sucesso. E a pacificação entre ibéricos e povos Tabajara foi firmada justamente em 5 de agosto de 1585, a data que a história oficial consagraria como a de fundação da cidade de Filipeia de Nossa Senhora das Neves (que virou Frederica durante rápida ocupação holandesa, posteriormente Parahyba, atualmente João Pessoa). Um marco que muitos historiadores paraibanos contestam, em que pese não discordarem de que se trata de uma data fundamental para a conquista da Paraíba. E cuja tese é defendida por Sylvia Brito.

Em sua pesquisa de doutoramento, ela indica, por exemplo, que apenas em 4 de novembro daquele ano foi iniciada a construção de um novo forte na área, esse erguido no “varadouro das naus”, uma área localizada na margem direita do Rio Sanhauá (afluente do Rio Paraíba), onde as águas eram pouco fundas e as naus costumavam encalhar. Foi em torno desse forte que a cidade de fato se iniciou e que deu origem ao bairro de Varadouro, que existe até os dias atuais.

Depois do Forte do Varadouro, surgiram outros: como o Forte de Cabedelo, em 1589

Reprodução/Tese de Sylvia Brito

Uma fortificação que, segundo descrições da época e resgatadas pela autora, foi erguida com "150 palmos de vão em quadra, com duas guaritas, que jogam 8 peças grossas, uma a revés da outra e alicerces de pedra e cal". Não há como se falar em cidade, portanto, antes de 4 de novembro. Mas Sylvia demonstra que mesmo essa data pode ser considerada problemática.

A partir de uma série de documentos que ela teve acesso, ela demonstra, por exemplo, que o Forte de Varadouro só foi finalizado em janeiro de 1586. Depois, os primeiros registros que tratam sobre a existência de uma Capitania da Paraíba também são de 1586. Desse mesmo ano, constam ainda relatos que indicam que o local onde deveria existir a cidade ainda estava “coberto de mato”.

Documentos que se referem a uma Capitania da Paraíba só começam a surgir após 1586

Universidade de Leiden/Reprodução/Sylvia Brito

Ademais, é de fevereiro de 1587 o primeiro documento que sobreviveu ao tempo e que já se refere a Filipeia de Nossa Senhora das Neves como sendo uma cidade, mesmo ano aliás em que o povoamento propriamente dito da cidade se inicia. Para Sylvia, portanto, é esse o ano de referência para a fundação da atual capital da Paraíba.

Isso, claro, não tira a importância vital da cidade para a União Ibérica. Foi o primeiro povoamento erguido no Brasil depois da primeira leva que surgiu com as capitanias hereditárias de 1530. E como Filipeia de Nossa Senhora das Neves já nasceu como cidade real, por decreto, se transformou logo de cara na terceira cidade mais antiga do futuro país. A primeira e mais desejada desde que o Atlântico virou o foco principal das atenções de Filipe II.

Ainda assim, engana-se quem acredita que, a partir de então, o processo foi pacífico. “A efetiva conquista da Paraíba ainda demoraria mais de uma década para se consolidar”, escreve Sylvia. Que enumera ainda ataques Potiguara constantes contra a cidade e suas fortificações militares ao longo dos 20 anos seguintes, para além dessa década inicial. Por exemplo, há registros documentais sobre conflitos mais violentos em anos como 1590, 1599, 1609, 1618.

“Foi um processo muito difícil. Muito precário e violento. Esse estado de guerra constante vai durar até a década de 1620. Uma violência sem fim de ambos os lados. E que termina mesmo com esse genocídio dos indígenas”, lamenta Sylvia.

O primeiro grande episódio neste sentido, de uma política realmente genocida contra indígenas da Paraíba, remonta de 1625, no massacre de Baía da Traição. Marcaria o fim da guerra, mas não o fim da violência contra esses povos. Essa, contudo, já é uma outra história.

Representação holandesa sobre a região da Paraíba no Século 17

Universidade de Leiden/Reprodução/Tese de Sylvia Brito
Fonte: G1/PB
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