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A equipe internacional que decifra receitas culinárias de mais de 4 mil anos

Por PCV Comunicação e Marketing Digital

18/10/2020 às 16:17:07 - Atualizado há
'Arqueologia culinária' utiliza tabuletas da Coleção Babilônica da Universidade de Yale, nos EUA, para obter uma compreensão mais profunda dessa cultura sob a ótica do sabor. O "me-e puhadi", ensopado de carneiro, é um prato tradicional no Iraque

THE YARVIN KITCHEN / ALAMY

As instruções para preparar um ensopado de cordeiro parecem mais uma lista de ingredientes do que uma receita autêntica: "Use carne. Prepare a água. Adicione sal, bolos de cevada secos, cebola, chalota (espécie de cebola persa) e leite. Esmague e acrescente alho e alho-poró".

Mas é impossível pedir ao chef que revele as partes que estão faltando: o autor desta receita está morto faz cerca de 4 mil anos.

Em vez disso, uma equipe internacional de acadêmicos versados em história da culinária, química dos alimentos e escrita cuneiforme (sistema de escrita babilônico desenvolvido pelos sumérios na Mesopotâmia) tem trabalhado para recriar não só esse prato, mas também outras três receitas consideradas as mais antigas do mundo.

É uma espécie de arqueologia culinária, que utiliza tabuletas da Coleção Babilônica da Universidade de Yale, nos EUA, para obter uma compreensão mais profunda dessa cultura sob a ótica do sabor.

"É como tentar reconstruir uma música; uma única nota pode fazer toda a diferença", explica Gojko Barjamovic, apontando para as tabuletas do tamanho de um livro protegidas pelo vidro no Museu Peabody de História Natural da Universidade de Yale.

Barjamovic, especialista em Assiriologia da Universidade de Harvard, também nos EUA, fez uma nova tradução das tabuletas e reuniu uma equipe interdisciplinar encarregada de trazer as receitas de volta à vida.

Três tabuletas datam de 1730 a.C., e a quarta é de aproximadamente mil anos depois. Todas são da região da Mesopotâmia, que inclui a Babilônia e a Assíria – o que corresponde hoje ao Iraque, mais precisamente às regiões ao norte e sul de Bagdá, incluindo partes da Síria e da Turquia.

Das três tabuletas mais antigas, a mais intacta é uma lista de ingredientes que constitui 25 receitas de ensopados e caldos; as outras duas, que contêm mais 10 receitas, vão mais fundo nas instruções de preparo e sugestões de apresentação, mas estão quebradas e, portanto, não são tão legíveis.

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O desafio era desvendar as páginas da história e, ao mesmo tempo, manter a autenticidade em meio às limitações dos ingredientes modernos.

"Não são receitas muito informativas – de quatro linhas, talvez –, então você faz muitas suposições", diz Pia Sorensen, especialista em química dos alimentos da Universidade de Harvard que trabalhou, junto com a colega Patricia Jurado Gonzalez, no aperfeiçoamento das proporções de ingredientes usando uma abordagem científica de hipóteses, controles e variáveis.

"Todos os alimentos de hoje e de 4 mil anos atrás são os mesmos: um pedaço de carne é basicamente um pedaço de carne. Do ponto de vista da física, o processo é o mesmo. Existe uma ciência que é a mesma de 4 mil anos atrás", afirma Jurado Gonzalez.

Os cientistas de alimentos usaram seu conhecimento sobre o paladar humano, os elementos essenciais da preparação que não mudam drasticamente ao longo do tempo e o que eles calcularam ser as proporções corretas de ingredientes para chegar à versão mais próxima da receita autêntica.

"Essa ideia de que podemos ser guiados pelo que funciona – se for muito líquida, será uma sopa. Observando os parâmetros essenciais, podemos chegar perto do que é – na maioria dos casos, um ensopado", diz Sorensen.

Uma equipe de acadêmicos está recriando receitas antigas de tabuletas cuneiforme

YALE BABYLONIAN COLLECTION

A descoberta dos pesquisadores mostra, em parte, a evolução do ensopado de carneiro, ainda bastante popular na cozinha iraquiana, no mesmo nível da "alta cozinha da Mesopotâmia", o que destaca a sofisticação de chefs de 4 mil anos atrás, avalia Agnete Lassen, curadora associada da Coleção Babilônica da Universidade de Yale.

Os quatro pratos selecionados a partir das receitas nas tabuletas também têm propósitos diferentes. O Pashrutum, por exemplo, é uma sopa indicada para quem está resfriado, explica Lassen, com seu caldo suave, acentuado pelos sabores do alho-poró, coentro e cebola.

O caldo Elamita ("mu elamutum"), por sua vez, está entre os dois pratos estrangeiros (ou "Zukanda") listados nas tabuletas, acrescenta Barjamovic.

Ele compara o mesmo à atual onipresença de pratos "estrangeiros", como lasanha ou hummus, que foram tirados de sua terra natal e adaptados a novos paladares, sendo indicativos da convivência entre culturas vizinhas.

"Há uma noção de 'gastronomia' nesses textos de 4 mil anos. Há a 'nossa' comida e comida 'estrangeira'", afirma Barjamovic.

"O que é estrangeiro não é ruim – apenas diferente e, às vezes, parece valer a pena cozinhá-los, já que nos dão a receita."

Embora seu caldo à base de sangue seja completamente proibido pela tradição islâmica e judaica de hoje, o elamita se originou onde hoje é o Irã e também leva endro, ingrediente que não é mencionado nas tabuletas, de acordo com os pesquisadores.

Esta distinção ainda está presente hoje em dia: a cozinha iraquiana raramente usa endro, tempero que é comum na culinária iraniana, o que pode indicar que este padrão foi estabelecido há milênios, acrescenta Barjamovic.

A historiadora Nawal Nasrallah, especialista em cozinha iraquiana, observa que a designação "estrangeira" é indicativa do comércio entre as duas culturas, e de um apreço por sabores que normalmente não são associados à culinária local. Segundo ela, os babilônios podem ter associado o gosto do endro ao elamita, da mesma maneira que associamos o coentro fresco a pratos hispânicos.

Há também um elemento de teatralidade e habilidade que é passado entre os chefs ao longo dos milênios, observaram os pesquisadores.

As tabuletas são da região da Mesopotâmia, que hoje corresponde a parte do Iraque, Síria e Turquia

NURPHOTO / GETTY IMAGES

Assim como os reis da gastronomia molecular de hoje em dia se divertem fazendo experimentos para brincar com as expectativas dos clientes nos restaurantes, os chefs da Mesopotâmia faziam o mesmo na preparação de banquetes elaborados, voltados para a alta sociedade. Pense em uma espécie de Ferran Adrià, precursor da gastronomia molecular, da antiga Assíria.

Um dos pratos se assemelha a um empadão de frango, com camadas de massa e pedaços de frango misturados em uma espécie de molho bechamel da Babilônia, conta Nasrallah, cuja pesquisa sobre alimentos árabes medievais ajudou a associar as antigas tabuletas a técnicas de preparo posteriores, da mesma região.

Segundo ela, a apresentação do prato também contém um elemento surpresa. A refeição era servida com uma cobertura crocante, que ao ser aberta revelava a carne dentro. É a técnica da "comida dentro de uma comida" que Nasrallah afirma ter sido reproduzida no Kitab al-Tabikh, livro de receitas do século 10, que descreve as tradições medievais locais, e novamente na cozinha moderna iraquiana.

"Hoje, no mundo árabe e particularmente no Iraque, nos orgulhamos de pratos recheados, como os dolmas. Nós meio que herdamos essa tendência à teatralidade", diz Nasrallah.

"Fiquei realmente fascinada pela continuidade da culinária e pelo que sobreviveu."

Essa sofisticação na preparação da comida babilônica inclui o uso de ingredientes coloridos, como açafrão, coentro, salsinha e acelga para chamar a atenção dos olhos e do paladar, além de usar um molho de peixe proveniente dos rios Tigre e Eufrates para adicionar um gosto umami ao prato, acrescenta Nasrallah.

Hoje, os ensopados da região são geralmente avermelhados, pela cor dos tomates (que chegaram séculos depois), mas o sabor de cominho, coentro, hortelã, alho e cebola ainda podem ser identificados. A gordura processada de rabo de ovelha (alya, em árabe), por exemplo, era considerada uma iguaria e um "ingrediente indispensável no Iraque até a década de 1960", segundo Nasrallah.

'No mundo árabe e particularmente no Iraque, nos orgulhamos de pratos recheados, como os dolmas', diz Nawal Nasrallah

MAHMOUD MASAD / ALAMY

"Eu vejo a mesma tendência desde os tempos antigos até hoje; não adicionamos apenas sal e pimenta-do-reino, acrescentamos uma combinação de especiarias para aprimorar o aroma e o sabor, e não adicionamos tudo de uma vez só, acrescentamos por etapas e permitimos que o ensopado ferva", diz ela.

O ensopado de cordeiro, me-e puhadi, é para ser comido com bolos de cevada, que devem ser molhados no caldo, como fazemos hoje com o pão na sopa. A versão do prato dos pesquisadores, que oferece uma textura e sabor forte, foi feita após meses de tentativas e erros usando o método científico de variáveis e controles para desvendar os mistérios da receita.

Eles perceberam, por exemplo, que acrescentar saponária, planta medicinal às vezes usada como sabão neutro, foi um erro de tradução: a adição desse ingrediente em qualquer medida deixava o prato amargo, espumoso e desagradável. Da mesma forma, o uso de temperos tem um limite: há uma certa quantidade de sal que em qualquer prato, seja hoje ou há 4 mil anos, pode torná-lo intragável.

Hoje, é possível reconhecer elementos de "comidas caseiras" de diversas culturas nesses pratos mesopotâmicos. O Tuh'u, por exemplo, usa beterraba e tem semelhanças tanto com o borsch, sopa comum na culinária asquenaze, assim como o ensopado Kofta Shawandar Hamudh (almôndegas com beterraba agridoce), famoso entre os judeus iraquianos.

Os cientistas calcularam as proporções de ingredientes usando uma abordagem científica de hipóteses, controles e variáveis

YALE BABYLONIAN COLLECTION

O ensopado de carneiro, igualmente, requer que a carne seja salteada na gordura de rabo de ovelha. Um primo próximo do ensopado pode ser a pacha iraquiana, prato que Nasrallah lembra de ver sua mãe cozinhando – a receita usa todas as partes da ovelha, que é preparada de maneira semelhante à descrita nas tabuletas.

"Fiquei realmente surpresa ao descobrir que uma comida básica hoje no Iraque, um ensopado, já era uma comida básica desde os tempos antigos, porque no Iraque hoje, essa é a nossa refeição diária: ensopado e arroz com pão", diz ela.

"É realmente fascinante ver como um prato tão simples, com toda a sua infinita variedade, sobreviveu desde os tempos antigos até o presente."

"E não acredito que essas receitas babilônicas sejam o começo; eles já haviam atingido níveis sofisticados ao cozinhar esses pratos. Então, quem sabe quanto tempo antes eles começaram?", indaga.

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Fonte: G1
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